REFLEXÕES SOBRE O DIÁLOGO PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE
Estamos
em um momento em que “a conversação já está quase morta” tal como dizia Guy
Debord, no clássico A sociedade do espetáculo; enquanto a retórica, o discurso
que visa a persuasão, pertencente ao campo deliberativo, há muito tempo se
extinguiu, pois, impossível é atribuir o nome de retórica ao palavreado que se
fragmenta dispersamente em dispositivos tecnológicos que, via de regra, não se
estrutura nem por exempla nem por entimema. Além disso, a
ausência de seres humanos eloquentes e ao mesmo tempo capazes de suscitar
empatia e confiança do público, elementos essenciais para os quais Aristóteles
apontava em seu tratado sobre o tema, é emblemática. Assim, ao longo dessa
nossa história, viemos desenhando o cenário que de modo fugidio e disperso
mostra-se praticamente acabado e finalizado hoje, graças à nossa estrondosa
vontade de inovação. Construímos o insondável nada para nos deleitarmos
no prazer da sensação da fugacidade dispersa e que tem impactado no processo de
ensino-aprendizagem. Velozmente, com a desconcentração necessária à ampliação
do divertimento sem memória, alimentamos nosso nada que dispersamente se
identifica às imagens de um outro que se faz interessante e digno de culto
graças à sua onipresença.
Esta,
cuja patente estava sob os auspícios divinos, fora quebrada com o auxílio dos
dispositivos tecnológicos e, democraticamente, disseminada. Pouco a pouco,
temos conseguido eliminar o diálogo e a retórica da contemporaneidade com a
pílula da crença de que estamos ganhando tempo com a possibilidade de enviar
mensagens ou memes ao invés de conversar, mostrarmo-nos ao público e interagir
no espaço da sala de aula. Tais expedientes arcaicos tinham alguma utilidade
quando ainda não havia dispositivos capazes de falar por nós. Agora, na
medida em que nossos representantes digitais nos resguardam da dura tarefa da
comunicação discursiva que se faz por meio de um logos, conquistamos
mais tempo para distrair nossa mente com o nada que rápido e
dispersamente estamos construindo em nós, para nós.
Entretanto,
a presença que se configura por estar ausente não é uma conquista moderna ou
contemporânea. Infelizmente, não somos tão inovadores assim. Mas, talvez,
a noção de que por meio da ausência-presente temos o controle do que queremos e
fazemos, bem como das consequências que nossas “escolhas” implicam seja uma
marca bastante distintiva do hoje sem moiras, sem destino, sem Deus, sem
intimidade discursiva do eu que se interroga a si mesmo lentamente. Mas,
somente talvez, pois ainda é assaz temerária tal afirmação sem nenhum
tipo de pesquisa ou reflexão efetivamente profunda e inquiridora a esse
respeito. Para este feito, é preciso tempo.
Ora,
se por um lado, o diálogo, prática humana que dá vazão à genuína curiosidade
que deseja conhecer pessoas por meio de suas experiências sobre o mundo e a
vida, alternando-se entre a fala e a escuta, há muito tem sido sobrepujado
pelos comentários sobre as imagens do entretenimento que saúdam nossos
sentidos, por outro lado, em nossa história recente, a eloquência de Cícero
diante do senado romano instrumentalizou-se, em 2015, como alcunha de uma
operação da Polícia Federal: a Operação Catilinárias.
De
fato, conseguirmos nos apropriar de Aristóteles ou de Cícero certamente não é
um problema, muito ao contrário, pode ser essencial para que consigamos romper
com o acúmulo caótico de informações vazias que saturam nossas mentes e adoecem
o raciocínio com a multiplicidade de palavras desprovidas de qualquer
referencial exterior ao signo do próprio grafema, sem, portanto, constituir
verdadeiro logos para o ato de ensinar. No entanto, o uso apenas
instrumental de nomes e de pensamentos da cultura Clássica, invariavelmente,
não é capaz de fazer nada além daquilo a que se propõe, a saber, borrifar spray
de verniz no pensar que, apodrecido pelos cupins da barbárie e da tutela, não
conseguem mais identificar em si a potência de legislar a própria razão. De
fato, usar os clássicos como instrumentos para alguma coisa como se
fossem meros alicates ou martelos, ou ainda, defender a utilidade fugazmente
prática deles constitui a própria lógica de um momento em que o
vocabulário, mesmo aquele que se destina a explicar conceitos do âmbito
educacional, está impregnado da nomenclatura empresarial cuja eficácia,
competência, habilidade, flexibilização, gestão, governabilidade e a tão
sonhada inovação repetem-se como mantras para almas que se exasperam por
avaliação e qualidade. Assim, chegamos ao cúmulo da eficácia de Cícero para
nomear uma operação da PF e, ao mesmo tempo, não termos ideia do que motivou o
orador a colocar em público sua ira contra Catilina, até porque além de não
sabermos quem foi Cícero, não sabemos o que foi Roma porque não reconhecemos em
nós o poder discursivo. Qual a utilidade de Roma, Cícero, Homero, Ricoeur,
Parmênides, Sófocles, Eurípides ou Sêneca? Nesse âmbito da eficácia puramente
instrumental: nenhuma. Mas porque estamos dispersos na utilidade porosa
da multiplicidade dispersa, enganamo-nos com a crença de que essas pessoas
servem apenas para nomear uma bolacha [Calipso], um automóvel [Clio], um
filme [Uma Odisseia no Espaço, Troia], uma novela [Mandala] e, assim, a
erudição torna-se útil para que sejamos competentes, talvez, em responder a um
quiz on line que distraia nossa fragmentação de ser dispersa.
Contudo,
se a inutilidade de Cícero, Homero e Platão nos toca e podem ser utilizados no
Ensino de Antiguidade é porque temos apreço por aquilo que, efetivamente, é
capaz de ressuscitar os mortos do passado atualizando nosso presente discursivo
e, na medida em que nos apropriamos dos mortos ressuscitados, invariavelmente,
abraçamo-los enquanto vivos. Homero vivo, Platão vivo, Cícero vivo não servem para
nada, assim como a minha vida, a vida de meus amigos, a vida de meus genitores
e a vida de meus descendentes não servem para nada: a vida não é meio, mas fim
em si mesmo.
Assim,
vamos ressuscitar esse modo arcaico de comunicação, que caiu em desuso, a
saber, o diálogo. De antemão, perdoem-me por abrir os porões dialógicos, mas
para quem concebe a vida como fonte de perscrutação constante, não se pode
esperar algo que toque o progresso.
Nesse
sentido, o que proponho é, na primeira parte desse artigo, discutir a diferença
entre o diálogo e aquilo a que chamo ‘comentário’ e, na segunda parte,
argumentar em favor da necessidade do diálogo para com a escrita. Afinal, a
cultura letrada constitui-se como autoridade para o Ensino de Antiguidade e,
faz-se mister discutir o modo pelo qual essa autoridade grafada precisa
articular-se com o diálogo. Assim, pretendo refletir nesse espaço sobre a
maneira como Platão, de um lado, aborda o verdadeiro diálogo oposto ao falso
diálogo e, por outro, a desgraça que se instaura com a leitura
inquestionada, para que nos apropriemos de nosso hoje que de modo inventivo
instaura dispositivos tecnológicos símiles aos “arcaicos” por meio dos
quais nós, similarmente às ações de dispersão discursiva que Platão retrata, recorremos
atualmente, embora arroguemo-nos ser excessivamente pós-modernos.
Detenhamo-nos
no início da República. Ali, vemos Sócrates prestes a retornar para
casa, quando é retido por Polemarco, Adimanto e outros. Sócrates, a contragosto
retarda sua volta e decide permanecer com Glauco, no Pireu, hospedado na casa
do meteco Céfalo para acompanhar com os jovens o espetáculo que cavaleiros
encenarão à noite. Munidos de tochas, estes irão passar um para o outro os
pequenos focos de luz. E Sócrates, coagido por seus amigos, ficará a madrugada
em claro para assistir a tal performance.
-Será que não sabeis
que hoje, ao entardecer, haverá uma corrida com tochas, dedicada à deusa? Elas
serão levadas por cavaleiros...
-Por cavaleiros? Disse
eu. Isso é novidade! Disputarão a cavalo, com as tochas nas mãos, passando-as
uns aos outros? É isso que dizes?
-Isso
mesmo, disse Polemarco. Além disso, farão uma vigília a que valerá a pena
assistir. Sairemos após o jantar e assistiremos à vigília. Lá encontraremos
muitos jovens e ficaremos dialogando. Vamos! Ficai conosco e desisti de
ir embora!
E Glauco disse:
-Ao que vejo, temos de
ficar.
-Mas, se assim pensas,
disse eu, assim temos de fazer. [328 a 1- b 5]
Que
fadiga o filósofo descalço prevê pela frente! Terá de ficar sentado em local
pouco iluminado, ouvindo os comentários dos rapazes sobre o desempenho dos
cavaleiros. Quando não, será interpelado acerca de sua opinião sobre a
acurácia ou debilidade dos homens que disputam! E pensar que ali ao seu lado
estarão aqueles com quem Sócrates mais gosta de compartilhar momentos! No
entanto, daí não se segue que ele goste de compartilhar todos os momentos. E
este, certamente, não é um deles.
Voltemos
à fala de Polemarco:
“Além
disso, farão uma vigília a que valerá a pena assistir. Sairemos após o jantar e
assistiremos à vigília. Lá encontraremos muitos jovens e ficaremos dialogando”.[καὶ συνεσόμεθά τε πολλοῖς τῶν νέων αὐτόθι καὶ διαλεξόμεθα]. Ora, o que Polemarco chama de diálogo,
na verdade, muito longe está daquilo a que estamos habituados ver Sócrates
fazer nos Diálogos platônicos dos quais é personagem. De fato, o diálogo empreendido
por Sócrates delineia-se pela alternância de perguntas e repostas. Estas
últimas, de maneira socrática, devem ser compreendidas como condição essencial
para a continuidade da conversa que ocorre com a formulação da pergunta
seguinte que, necessariamente, requer a resposta anterior do interlocutor.
Desse modo, o diálogo não pressupõe conteúdos definidos para ser empreendido,
pois que depende da fala anterior para o desenvolvimento. Portanto, é
como processo que é preciso pensarmos acerca do diálogo socrático, processo
este que se constrói aos poucos e exige a participação dos interlocutores na
elaboração do saber. Além disso, o verdadeiro diálogo é paciente, uma vez que,
a cadência que instaura expurga interrupções. A fala seguinte só é possível após
a fala precedente concluir-se e, assim, sucessivamente, o que gera entre os
participantes do diálogo a igualdade de fala e de escuta. Assim, a concentração
é indissociável do método dialógico. Para que as falas se alternem com completo
comprometimento pela busca do saber, a atenção cuidadosa ao pensamento do outro
manifesto pelo discurso que emite é a própria condição de possibilidade para
que ocorra um diálogo efetivo. Interlocutores dispersos com coisas além da
própria construção dialógica não dialogam. Podem até achar que estão
dialogando, mas na verdade não efetivam a elaboração discursiva que requer
falas atentas para a composição do conhecimento.
Sócrates
deseja voltar para sua casa porque não quer passar a noite toda sentado comentando
o desfile, tal qual os narradores que adentram a madrugada comentando entre
si as apresentações de escolas de samba. Ora, aquilo que Polemarco chama de
diálogo, na verdade, não passa do que chamamos de comentário. Como
poderão dialogar com outros jovens, já que estarão entretidos com o que se
passará diante de seus olhos? Para que Polemarco dialogue com outros rapazes, é
preciso prestar atenção a eles e isso significa entregar-se ao momento
dialógico. Além disso, o diálogo enquanto método essencial para o conhecimento
de si busca trazer à tona o que somos e não aquilo que está fora de nós, como o
desfile. Daí, então, a impossibilidade do diálogo sobre as muitas coisas que
integram o sensível. Em outras palavras, como nos ensina o Fedro: o
diálogo dá à luz a logoi e estes são discursos gerados não a partir
daquilo que vemos, ouvimos, tocamos, degustamos ou cheiramos, mas têm como
origem nossa razão. Logo, mesmo que se refiram às nossas experiências
sensíveis, eles não decorrem delas, mas são concebidos pela razão e, assim, têm
como origem o próprio indivíduo que dialoga. O diálogo marca a responsabilidade
que o agente tem em relação ao seu discurso, assumindo-se como pai-originário
do filho que nasce com o parto dialógico. E o comentário ou opinião? De onde
vem? Ao que se refere? O que ensina de si mesmo aquele que o profere?
Ao
descrever nossa natureza em relação à educação e ausência desta, Sócrates, no
livro VII da República, lança a hipótese de que os prisioneiros da
caverna mesmo sendo capazes de dialogar, iriam dedicar seu tempo a nomear [nomizei]
as coisas.
-Então,
se fossem capazes de conversar entre si, não achas que eles pensariam que, ao
dar nome ao que estavam vendo, estariam nomeando coisas realmente existentes?
[515 b-6-8]
E
mais à frente:
-Se,
naquele tempo entre eles havia honras, louvores e também prêmios concedidos a
quem observasse com um olhar mais aguçado os objetos que desfilassem diante
deles e se lembrasse melhor do que costumava vir antes, depois ou
simultaneamente e, a partir disso, tivesse mais capacidade para adivinhar o que
estivesse por vir, na tua opinião, não achas que ele cobiçaria essas
recompensas e invejaria os que, entre eles, fossem honrados e tivessem poder?
[516 c 8- d 4]
Ora,
sabemos que os prisioneiros da caverna observam sentados as imagens que
passam à sua frente e discutem sobre elas. No entanto, uma vez que a fala
empreendida por eles remete-se apenas ao conteúdo sensível que passa diante de
seus olhos, embora sejam capazes, eles não dialogam efetivamente, mas somente
nomeiam o que, na verdade, são sombras, em busca das recompensas pela vitória
na disputa.
Com
efeito, nada há mais contrário ao verdadeiro diálogo que a competição, uma vez
que esta pressupõe perdedores e ganhadores. Nas disputas, alguém perde para que
outro ganhe; no diálogo os interlocutores sempre ganharão porque ambos
avançam na construção do saber. Há inviabilidade para que a dialogia seja
competitiva, pois ela se exerce no exame das falas que vão se lapidando ao
longo do processo. Assim, aquele que inicia o diálogo com uma posição errônea,
não perde por causa disso, precisamente porque a abertura em relação à mudança
de posição que se fundamenta no conhecimento e produção de um logos,
significa a passagem da ignorância ao saber e isso não pode ser caracterizado
como perda, senão a Educação consistiria em um imenso fracasso [algo que,
aliás, faz bastante sentido para a sociedade das imagens, basta pensarmos na
reação dos detentos da caverna em relação àquele que, tendo sido liberto, volta
para dialogar; basta pensarmos nas últimas declarações de alguns de
nossos representantes democraticamente eleitos sobre a corrupção das mentes que
a filosofia provoca, atualizada com o termo balbúrdia].
Certamente,
perder, no âmbito educacional, só pode ser o contrário da saída da ignorância,
uma vez que é sua manutenção, quando, a despeito da evidência dos discursos, o
interlocutor insiste em conservar convicções, tal como o diálogo Górgias
nos apresenta o comportamento de Cálicles, arraigado que está a concepções que
não se sustentam à profundidade que o exame dialógico imprime.
Portanto,
nem Polemarco, nem os prisioneiros da caverna, nem nós dialogamos enquanto
fixamos o olhar no desfile de imagens que passam na televisão, na tela do
computador, do cinema, do smartphone, ou nos palcos do teatro comercial e do
sambódromo. A fala que desenvolvemos referente a tais imagens é o comentário:
nomeamos o que vemos, de maneira desvinculada de nós mesmos, pois não pensamos
sobre o que somos, sobre o que o outro que comenta comigo é para mim e
para si. Nesse momento, ele e eu nos coisificamos e essa é a condição essencial
para que a distração, ou seja, o não pensar, proporcione o prazer divertido que
tanto almejamos. Pensar sobre si sempre é pensar sobre limitações e sobre uma
dimensão acerca da qual não temos controle. Isso não diverte, mas nos converte
para a unidade de uma identidade não dispersa. Para o conhecimento de si, a
concentração no que o outro diz é fundamental porque revela algo do
outro que pensa e não algo de uma coisa. Assim, se o que o outro diz,
diz algo sobre uma coisa, não diz algo sobre ele, mas sobre uma coisa. E
assim, o comentário cresce divertindo-nos e dispersando-nos na multiplicidade
imagética. Essa reificação discursiva não é nada, ou melhor, é um acúmulo de
efêmeras divertidas/tediosas pílulas que alimentam o vício da
despreocupação.
Deixemos,
agora, o diálogo hibernando para que não morra e, passemos, a algumas
considerações sobre a escrita. Embora, o título desse artigo não contenha o termo
escrita ou escrever, tenho certeza de que todos a pressupõe para a leitura. Com
efeito, escrita e leitura formam um par indissociável: escreve-se para que
alguém leia. No Fedro, Sócrates diz ao personagem homônimo:
-É
que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto parecidíssima com a
pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se
alguém lhe formula alguma pergunta, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa
com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes;
mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles dizem,
só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente
fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem o menor discrime, tanto
por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm que ver com o assunto
de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de
serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda
paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer
alguém. [275 d 4- e 8]
Sócrates
nos explica o porquê a escrita precisa ser tomada com cautela. O âmbito da
leitura não é o mesmo do diálogo. Se, por um lado, o diálogo confere a
possibilidade do questionamento constante e reformulação de respostas, por
outro lado, a escrita sempre se repete. E, precisamente, por isso, ela é
perigosa, e deve ser manejada com cuidado. Com efeito, o fato de que algo
esteja escrito não implica na verdade do que se lê. A escrita também
precisa ser interrogada, mas, diferentemente, do diálogo que pode se
reformular, ela responderá sempre do mesmo modo e, precisamente por isso, não
pode ser lida como se fosse autônoma, como se tivesse brotado no papel ou nas
plataformas digitais tais quais Twitter, Facebook ou WhatsApp, por vontade
própria. A escrita, assim como o discurso do diálogo, tem um pai, no entanto,
este encontra-se ausente dos grammata. Desse modo, como podemos nos fiar
aos escritos cuja fonte é desconhecida? Ou mesmo, como acreditar em
textos escritos cuja origem é notória? Simplesmente, não podemos acreditar. A
crença ou, de modo mais elaborado, o alcance do conhecimento pela leitura é
impossível porque identifica o ato de conhecer ao preenchimento de vasilhas
mentais com um conteúdo exterior ao próprio indivíduo. Desse modo, Sócrates, em
certo sentido, chama-nos a atenção para o problema que a leitura passiva
implica: ela não gera logoi e, portanto, não passa de uma coisa. Por
isso, é preciso agir durante a leitura e isso implica interrogar aquilo que
estamos lendo a fim de fazer vir à tona questões acerca de nós mesmos. Em
outros termos, é preciso que um campo da não compreensão total e da dúvida
sempre esteja presente no ato de ler para que a leitura esteja em movimento,
desvinculando-se da noção de “memorização”, noção esta que, aliás, Fedro pensa
ser uma virtude. Desse modo, à escrita também cabe a possibilidade de revisão
de ideias e posições e, assim, escrever pode ser um ato que fomenta o diálogo
para aquele que escreve.
Por
fim, termino com a breve menção à tragédia pela qual tenho apreço imenso,
tragédia essa que, no final das contas, despertou em mim o gosto pelo gênero
trágico.
Na
tragédia Hipólito, de Eurípides, Teseu acredita nos grammata que
incriminam seu filho e no corpo morto de sua esposa [a responsável pelos
escritos], como provas de que o jovem tivesse cometido o estupro da madrasta.
Hipólito não fora, efetivamente, ouvido pelo pai e, assim, não conseguira
defender-se porque a morta, enquanto morta, teve mais dignidade que seu
discurso vivo. Aliás, antes mesmo de ouvir o filho, Teseu toma a decisão
de enviar a praga que destruiria Hipólito a fim de vingar-se do crime que
pseudo sofrera a falecida esposa. Teseu, sem tecnologia, precisava poupar seu
tempo. Muito atarefado que era, não podia se dar ao luxo de interrogar o filho
sobre algo que já sabia, por ter lido. Agora, tudo o que Hipólito disser não
importa porque Teseu não está aberto ao diálogo. Assim como o pai mítico da
democracia ateniense, nos acomodamos melhor à estática que à dinâmica. É mais
cômodo tomar decisões sem ouvir o outro, é mais prazeroso ficar sentado que em
movimento, é mais fácil ler e reproduzir. É mais fácil, mais cômodo e menos
custoso ser coisa que ser alguém que gera e dá à luz a discursos
permanentemente inacabados.
Assim,
o ensino da Antiguidade quando visto como germe vivo, e não apenas como belos
textos de autoridade erudita, desmembra a interlocução e o questionamento.
Estes são os pré-requisitos fundamentais para que o pensamento que se torna
capaz de pensar por si, elabore o conceito, ou seja, o discurso que o
pensamento concebe a partir de si e da alteridade, cujo resultado não é nem uma
subjetividade, nem a inércia de dados superpostos, mas a universalidade do processo
autônomo e vivamente aberto ao diálogo na medida em que é um logos.
Referências
Cristina
de Souza Agostini é professora de Filosofia Antiga na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. Possui doutorado sanduíche na EHESS-Paris e pós-doutorado em
Letras Clássicas-Grego, pela Universidade de São Paulo. Como docente, além do
Ensino Universitário, já lecionou Filosofia no Ensino Médio e no Ensino
Fundamental de escolas particulares de São Paulo.
PLATÃO.
Fedro. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da Universidade
Federal do Pará.
______.
República. Tradução: Anna Lia de Amaral Almeida Prado. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 2006.
DÉBORD,
G. A sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2007
Professora Cristina, ao seu ver qual a importância dos "clássicos" para o ensino de história? Cordialmente, Douglas Carneiro.
ResponderExcluirCaro Douglas, como toda a minha formação é filosófica, não sei responder-te com especificidade no caso da História. No entanto, penso que os Clássicos da Antiguidade são imprescindíveis para a formação em qualquer área de estudos. Veja um exemplo: a concepção de átomo. Ora, quem elaborou a noção hipotética de átomo pela primeira vez na História foi Leucipo e, em seguida, Demócrito. Quando adentramos ao campo conceitual da discussão desses filósofos que pensa o átoml como princípio de cosmo, ou seja, de todas as coisas conseguimos estabelecer parâmetros de pensamento universais. Com efeito, o universal é condição de possibilidade tanto para o fazer científico como para o estabelecimento de modos sociais.
ExcluirOlá, professora Cristina seu artigo Reflexão sobre o diálogo para o estudos da Antiguidade, nos disperta a carência de um debate sobre a história Clássica no qual temos alusão ao desfeixo do período Contemporâneo. Seria possível uma reestruturação no contexto atual.
ResponderExcluirGERONILDO OLIVEIRA DA PAIXÃO.
Caro Geronildo, não sei se compreendi bem sua questão, mas penso que os clássicos podem ser discutidos sempre, em qualquer época. No entanto, não podemos deixar de lado a contextualização deles.
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ResponderExcluirOlá, professora Cristina! O prazeroso texto que a senhora desenvolveu abordando o diálogo na nossa contemporaneidade, fez-me questionar: como podemos incentivar um jovem, ou uma criança a dialogar livremente nos dias de hoje já que grande parte da informação encontra-se "pronta" de forma online? Devido a inovação tecnológica não é mais acessível a "dúvida" entre os jovens. A sua maioria acessa sites e copia suas respostas (pois, com a tecnologia, e os demais meios para se fazer pesquisas é possível encontrar respostas "fáceis" das quais não são questionadas nem verificadas pela maioria). Na sala de aula por exemplo, muitos alunos não questionam as informações que lhes são dadas, sequer pesquisam sobre alguns assuntos.São jovens alienados, que com a facilidade de respostas não adentram em suas pesquisas para analisá-las. Assim, como poderíamos incentivar jovens, adultos, e crianças a questionar algo? Desse modo, alimentando o diálogo entre eles sobre assuntos na nossa atualidade.
ResponderExcluirAtt.: Ismara Morais da Silva
Cara Ismara, penso que em primeiro lugar temos que abolir qualquer pré julgamento acerca dos jovens de hoje. Minha experiência com o ensino médio (que é recente) mostrou-me que o grande problema é, precisamente, tratá-los como se fosse apenas vasilhas que serão enchidas nas aulas. Na medida em que nos colocamos um pouco nesse lugar de intermédio (nem adulto, nem criança) e ao mesmo tempo (muito grande ou muito pequeno) para fazer tais e quais coisas, a empatia se instaura e o diálogo surge. Sócrates nos ensina em muitos diálogos que não há efetivo movimento dialógico sem abertura de ambas as partes. Nesse sentido, olhar o outro como alguém em potencial de saber, olhar o outro como alguém que tem muito a oferecer abre as portas perceptivas desse outro que encontra a abertura para o falar. O primeiro passo é nosso. Incentivamos alguém a dialogar quando dialogamos. Lembro-me de que em todas as minhas aulas de Filosofia para o ensino médio, a primeira coisa que fazia na sala de aula era perguntar "como vocês estão se sentindo hoje?" Havia resposta. E em seguida, eu, sem esperar, recebia uma devolutiva : "e como a senhora está?". E eu respondia sinceramente. Agora pensemos, quem é que pergunta a você como você se sente? Sentir é perceber o mundo. Vamos dar o primeiro passo sempre.
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ResponderExcluirCara professora, como aplicar esses conceitos, na visão da senhora, na forma de aplicações práticas dentro de sala de aula e campos de ensino?
ResponderExcluirOlá, Pedro. Em virtude da minha experiência afirmo que a leitura do texto é fundamental. A leitura dos diálogos platônicos de modo teatralizado, assim como a leitura de Aristóteles ou Sófocles é extremamente rebelde e de modo invariável desperta interesse nas alunas e alunos. Assim, o ponto de partida é sempre a leitura alternada em voz alta para o segundo momento em que a autoridade textual precisa ser contraposta à outra autoridade e, posteriormente, a um pensar que se elabora a partir do lido e que por estar aderente ao processo de construção da fundamentação filosofal é capaz de acercar-se de concordar ou discordar ancorado na racionalidade.
ExcluirGrato, professora!
ExcluirExelente texto Professora, entender um contexto múltiplo da divergência entre diálogo e comentário é a base para uma reformulação educacional digna, longe de falacias dentre outros, neste sentido, de qual maneira poderia ser passado essa linha de raciocínio no ensino básico brasileiro (ensino fundamental e médio) ??, visto que, quanto mais cedo trabalharmos com estes conceitos, mais cedo talvez de certa forma diminuiremos o número de individuos com narrativas curtas e sem nexo algum.
ResponderExcluirNome: Daniel Carballo
Caro Daniel, a leitura dramática do texto, acredito, é uma alternativa muito proveitosa. A inserção do expediente teatral, valendo-se dos modos de ação de Brecht, penso ser definidor para um interesse que vai além da sala de aula. Nesse sentido, não basta apenas ler os textos clássicos com os alunos, mas ressuscitá-los com eles, colocando-os para interpretar. E a partir dessa dificuldade, observamos que o interesse por compreender o que está passando ali se materializa. Eu também acredito muito nos trabalhos manuais que foram deixados de lado. Com isso, quero dizer que acredito demais na potência de exercícios que se valham de tesoura, papel e lápis de cor, mesmo para classes mais avançadas. Na medida em que não há mais essa prática comum em sala, quando ela aparece e aparece contextualizada, com desafios cuja língua seja aquela que reverbera em todas as frustrações dos adolescentes, é perceptível o real interesse.
ExcluirOlá, professora Cristina! Primeiramente, a parabenizo pelo belo texto. Muito bem exemplificado e explicativo. Acredito que nossa realidade reflete fortemente no avanço tecnológico. E de fato há enorme carência de diálogo, uma vez que, em maior parte do nosso tempo, estamos conectados, vivendo de curtidas de comentários. Conversas pessoalmente se tornam cada vez mais vagas e desinteressantes, digamos, para muitos. É muito importante sabermos a distinção entre diálogo e comentário, já que pouquíssimas pessoas param para pensar sobre tal reflexão. E sobre a antiguidade, faz-se necessário sabermos ao menos um pouco, pois se analisarmos, vemos que assuntos daquela realidade podem ser comparados com o presente, agravados pela evolução, obviamente.
ResponderExcluir- Maria Liliane da Silva Santos
Exato Maria. Veja que a sensação que muitos têm de que o passado era melhor que antes, a chamada nostalgia, é ponto comum nas comédias aristofânicas. Com efeito, o nostos sempre é retratado por Aristófanes, precisamente nas situações que concernem à educação e à juventude. Coisas do tipo: antes os jovens respeitavam os mais velhos, antes os jovens estudavam, etc dão a tônica de uma comédia como Nuvens, por exemplo. Nesse sentido, penso que o fato bruto do desinteresse pelo pensar e a indústria do entretenimento (matéria farta para as discussões da Teoria Crítica) nos dão uma remodelação do problema central que diz respeito à capacidade de elaboração argumentativa baseada em independência do pensar a regras próprias (hoje chamamos isso de Lógica). Como fazer para estimular ou abrir caminhos para o pensar? Acho que esse é o ponto fundamental e que está muito longe de a escola, em sua estrutura mercadológica atual que separa completamente vida de pensamento, bem como ignora a vontade de potência dos alunos, resolver.
ExcluirOlá, professora Cristina! Como ficou clara em sua reflexão, estamos em uma era tecnológica, porém, no âmbito educacional muitas vezes nos deparamos com a face negativa dessa ferramenta. Em sua opinião, como podemos utilizar a tecnologia como metodologia ativa para despertar nos alunos interesse pelo diálogo ou até mesmo para a leitura mais aprofundada, seguida por questionamentos?
ResponderExcluirAo atuar ensinando História, deparei com essa dificuldade, principalmente, quando se trata de História Antiga, vendo muitos alunos atrelados aos meios digitais e demostrando pouco interesse em realizar leituras ou dialogar com o professor. Dessa forma, pretendo construir um manual didático com metodologias que possam auxiliar o professor a tornar mais dinâmico e interessante o ensino de História Antiga. Seu texto foi importante para essa reflexão! Beijos profª.
Att. Naiana Correia Machado
Olá, Naiana. Primeiramente, penso que não existem metodologias ativas ou passivas. Existem métodos. O método em si será sempre neutro. No entanto, como esse método será utilizado é que o tornará em eficaz ou ineficaz. As tecnologias podem ser úteis quando são pensadas como tecnologias, ou seja, ferramentas. Ora, a caneta é uma tecnologia. Antes dela, havia a caneta tinteiro, a pena.... Desse modo, quando há a subjugação da tecnologia à vontade, e ao desafio, aí estamos no controle. Quando eu dava aula no ensino médio, muitas vezes me valia de alguns recortes de filmes como os de Rosselini, por exemplo, pois tratam de Agostinho, Sócrates, Descartes e Pascal, e os apresentava. No entanto, eu entregava uma folha com lacunas para que os alunos preenchessem a frase de acordo com o que fora dito naquele extrato. Era impressionante, pois eles queriam completar as lacunas e quando não conseguiam, eu precisava repetir. Ora, o que eu queria aí: que eles se concentrassem por uns cinco minutos e ao mesmo tempo utilizassem a escrita manual que é mais lenta, para que com isso desenvolvessem um interesse por aquilo que estavam completando. E isso sempre aconteceu. Me vali de outros modos também da tecnologia, mas penso que, em primeiro lugar, precisamos saber quem somos enquanto docentes. Se somos mais lentos, mais ágeis, mais teatrais, mais calados. A partir do que somos é que encontramos o método adequado a nós. Não pode ser o contrário. Nós é que precisamos conferir força ao método e sempre deixar claro que a gente acredita muito sim nesses adolescentes todos. Quando você entra em uma sala e você começa o diálogo, pode ter certeza de que a coisa vai fluir. Pode não ser imediatamente, mas aos poucos ela flui.
ResponderExcluirEstimada Professora Cristina,
ResponderExcluirEm nome da Mesa de Ensino de História Antiga, gostaria de agradecer por compartilhar o seu conhecimento conosco. O seu trabalho foi um diferencial em nosso evento. É perceptível o quanto as suas reflexões motivaram e incentivaram os leitores. Obrigado!