O ENSINO DAS LETRAS CLÁSSICAS PARA O ESTUDO DA
ANTIGUIDADE – UMA PROPOSTA METODOLÓGICA
O
estudo das letras clássicas, apesar de todo o desprezo que vem recebendo por
parte de governos e até mesmo por instituições de ensino, é ainda um
diferencial para aqueles que se debruçam sobre os estudos das humanidades, bem
como um enriquecimento em outras áreas do saber. Para a História, e
especificamente para aqueles que se dedicam ao estudo da História Antiga, em
concreto a greco-latina, é imprescindível o conhecimento das línguas clássicas,
veículo de toda a produção da época. Ao referirmo-nos ao termo “Letras
Clássicas”, entendemos o estudo do latim clássico e do grego antigo.
Assim
como seria estranho pensar em um especialista sobre a Guerra de Secessão que
não soubesse inglês ou um pesquisador da Revolução Francesa que não tivesse
boas noções de francês, do mesmo modo deveria espantar-nos conceber
historiadores focados no Império Romano ou em Esparta ou Atenas e que não
tenham noções mínimas das línguas desses povos e civilizações. Um verdadeiro
pesquisador no campo da História não é quem apenas contrapõe fontes
secundárias, mas aquele que também se debruça sobre fontes primárias, compara-as,
estuda-as criticamente para confirmar ou reformular o que já foi dito e escrito
sobre certos temas, atuando como autoridade na área.
Este
trabalho está pensado para estudantes e pesquisadores de História, mas poderia
ser direcionado a outras áreas também, indo da filosofia, passando pelo direito
e chegando até mesmo à botânica, à medicina e à área da saúde como um todo.
Além do público ao qual nos direcionamos, faremos um recorte na área de
pesquisa, ao focar apenas no mundo romano. Sendo assim, a língua ao qual nos
debruçaremos nas próximas linhas será o latim, concretamente, a experiência de
ensiná-lo como uma disciplina optativa para alunos da graduação de História.
Temos em vista, conforme afirma Campos [2019, p. 54], que “no campo dos Estudos
da Antiguidade, é possível frisar que os textos literários são, certamente, as
mais extensas e acessíveis fontes disponíveis aos discentes”. Portanto,
torna-se não apenas plausível, mas também necessário, que o historiador tenha
um conhecimento amplo da língua original dos textos com que trabalha.
O
latim como disciplina para graduandos de História
A
ideia de oferecer uma disciplina optativa de latim para alunos da graduação de
História da UFRJ surgiu por meio do grupo de pesquisa ATRIVM-UFRJ, o qual promove
a interdisciplinaridade na pesquisa e ensino da Antiguidade e tem professores
de ambas faculdades como membros. O projeto teve uma duração de dois anos,
iniciando no primeiro semestre de 2016 e com término ao final de 2017. Os
professores eram alunos do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da
UFRJ, os quais eram coordenados por professores efetivos da universidade.
Durante o primeiro ano, os participantes do curso receberam noções básicas de
latim, com enfoque em vocabulário e estruturas latinas, sem seguir
exclusivamente alguma gramática ou material didático em específico. Os
graduandos tiveram uma noção geral dos diferentes tipos de pronúncia latina, a
saber, a eclesiástica, a reconstituída e a vernácula. Após uma breve explanação
sobre cada uma delas, foi-lhes recomendada a reconstituída, utilizada em
praticamente todas as instituições de ensino superior do país que ensinam
latim. Após a pronúncia e o alfabeto, bem como outros aspectos, como a origem
da língua, por exemplo, as aulas se centraram em estruturar o idioma, com suas
cinco declinações e quatro conjugações.
Em
2017 tivemos a oportunidade de fazer parte deste projeto e colaborar como
professor desses alunos, que já haviam recebido um ano inteiro de formação na língua
latina. Havia também alguns alunos mais novos, que estavam apenas começando ou
que haviam iniciado o curso há apenas seis meses. Na impossibilidade da criação
de duas turmas, fez-se necessário aumentar o tempo de aula, que, apesar de
contar com apenas um encontro semanal, passou a ter a duração de três horas,
algumas vezes três horas e meia. Os alunos iniciantes foram instados a
estudarem por conta própria, a fim de alcançarem o nível médio da turma.
A
escolha da metodologia e seu emprego
Há,
em geral, duas formas para se estudar o latim. A primeira é a indutiva, também
chamada de natural, no qual toda a aula e textos estão escritos apenas em
latim, sem qualquer alusão a outro idioma. Um exemplo de tal método é o Lingua
Latina per se illustrata, de Hans Ørberg, uma coleção com dois volumes e
outros livros de apoio, escrita completamente em latim e que, de forma
intuitiva, ensina, com um nível de dificuldade gradual, vocabulário e
estruturas latinas, através de histórias, na maioria das vezes. A segunda forma
é a dedutiva, que foi basicamente a utilizada em 2016, na qual eram
apresentadas estruturas gramaticais aos alunos, e logo depois eram realizados
exercícios baseados nessas estruturas recém-apresentadas.
Nosso
intuito sempre foi o de fornecer aos alunos as ferramentas necessárias para que
eles pudessem aprender o idioma da forma mais ágil e eficaz possível. Contudo,
sabíamos das dificuldades por parte deles, seja pela pouca disponibilidade de
tempo, seja pela dificuldade que é dedicar-se ao estudo das línguas clássicas,
a qual é conhecida apenas por aqueles que já se aventuraram nessa empreitada.
Por ser apenas uma disciplina optativa, não poderíamos exigir grandes
sacrifícios dos alunos, tampouco seria conveniente deixar-lhes muitas tarefas
para serem feitas ao longo da semana, tendo em vista a quantidade de trabalho
que tinham, seja pelas disciplinas obrigatórias da graduação, seja por outros
afazeres próprios. Apesar da motivação por parte deles, muitos dos quais eram
alunos de iniciação científica ou estavam já se preparando para o mestrado e
gostariam de se aprofundar em suas pesquisas e textos trabalhados, tendo
conhecimento deles no original, estávamos conscientes de que haviam muitos
obstáculos a serem superados.
Na
inviabilidade de oferecer um método totalmente indutivo, como o supracitado, e
tendo em vista os dois semestres de estudo que os alunos já haviam tido com
métodos exclusivamente dedutivos, dedicamo-nos a buscar, com sucesso a nosso
ver, tendo em vista os resultados obtidos, um meio termo. Tratava-se de uma
tese de doutorado, premiada pela CAPES, de José Amarante, professor da
Universidade Federal da Bahia. Transformada em livro didático, com dois
volumes, a coleção Latinitas – leitura de textos em língua latina,
caiu como uma luva para a necessidade da turma. Ao explorar textos originais da
literatura latina, adaptados apenas nas primeiras unidades, o material não
desprezava o ensino das estruturas da língua, funcionando como uma espécie de
meio termo entre os dois métodos, tendendo às vezes ao método indutivo e, às
vezes, ao dedutivo. O material utilizado foi o primeiro volume, cujo subtítulo
é: Fábulas mitológicas e esópicas, epigramas, epístolas. Além disso, há
um site do material, latinitasbrasil.org, em que se pode não apenas realizar
o download gratuito dos livros, mas também é disponibilizada a correção dos
exercícios.
O
método foi utilizado com sucesso ao longo de 2017, permitindo aos alunos não
apenas repassarem as estruturas aprendidas em 2016, mas também utilizá-las ativamente
na leitura e tradução dos textos apresentados no livro. Os resultados foram
tais que já ao final do ano os alunos foram desafiados, como substituição à
avaliação tradicional, a traduzirem e analisarem textos de suas pesquisas, os
quais nos pareceram bastante satisfatórios e, em alguns casos, superaram em
muitas nossas expectativas. Se o principal objetivo para o estudo do latim era
o conhecimento da língua para entender textos originais sem nenhuma
intermediação, a avaliação deveria, de alguma forma, mensurar essa capacidade
nos alunos.
Obviamente,
estamos falando de uma disciplina optativa que ocorria apenas uma vez por
semana ao longo do semestre, ou seja, uma média que, na prática, girava entre
vinte e trinta encontros anuais. É praticamente impossível dominar qualquer
idioma em tão pouco tempo, e mais uma língua como o latim. Os alunos, ao final
desses dois anos, muito provavelmente não dominavam, por exemplo, A sintaxe
do período subordinado latino, de Paulo Sérgio de Vasconcellos, mas com
certeza receberam as ferramentas necessárias para sua pesquisa e, o mais
importante, autonomia para avançar no estudo da língua.
A
leitura e tradução de textos latinos
O
curso não tinha como finalidade que os alunos fossem capazes de ler qualquer
texto escrito em latim como se pode ler algo em inglês, italiano ou qualquer
outro idioma moderno. Pensar assim, já de início demonstra uma falta de
conhecimento do estilo latino, que em geral se diferencia bastante dos estilos
de escrita moderna. Por outro lado, o aluno, tendo certo conhecimento da
morfossintaxe latina e com o auxílio de um bom dicionário, terá a habilidade de
aprofundar-se em textos e passagens que considerar mais produtivos para a sua
pesquisa. Não se trata de deixar de lado boas traduções e comentários de
especialistas, mas de tê-los apenas como um apoio e uma proposta, e não como um
dogma irrevogável.
Sobre
a tradução de textos, sobretudo antigos, concordamos com Antoine Berman [2013,
p. 25], quando afirma que é possível a elaboração de uma tradução sem teoria,
mas não sem pensamento. De fato, este “pensamento” provavelmente seja a causa
do nascimento do jogo de palavras italianas traduttore, traditore
[tradutor, traidor]. Não é o mesmo, portanto, ler um original e sua tradução.
Se tal premissa é verdadeira para línguas modernas, muito mais o será para as
clássicas. Nesse sentido, é ilustrativa a imagem utilizada por Cervantes e
citada por Störig [1963, pp. 6-7]: “Parece-me que traduzindo de uma língua a
outra [...] se faz justamente como aquele que olha uma tapeçaria flamenga ao
avesso: mesmo vendo as figuras, elas estão repletas de fios que as obscurecem,
de maneira que não podem ser vistas com o brilho do lado direito.”
Se
uma tradução carrega consigo traços tão deformantes e se, por mais esmerada que
seja, jamais se igualará ao texto original, por que, então, traduzir ou ler
livros traduzidos? Pode parecer simplista a resposta de Walter Benjamin, no
entanto carrega consigo uma realidade sem a qual a tradução não teria em sua
essência uma razão de ser: “Uma tradução é feita para os leitores que não
entendem o original.” [1971, pp. 261-262]. E, no caso das línguas clássicas,
acreditamos que não se trate apenas de não entender o original, mas também de
estarmos abertos a outras propostas de tradução que podem até mesmo enriquecer
nosso conhecimento da língua. De fato, uma tradução deve estar “animada pelo
desejo de abrir o Estrangeiro enquanto Estrangeiro ao seu próprio espaço de
língua.” [Berman, 2013, p. 97].
Considerações
parciais
A modo
de conclusão pelo que foi exposto e discutido acima, é digna uma menção à
interdisciplinaridade. Todo o projeto não teria sido levado a cabo se não
houvesse uma iniciativa por parte de um grupo de pesquisa interdisciplinar. A
especialização é necessária para colher frutos fecundos na pesquisa, mas também
pode ser uma das grandes responsáveis pela departamentalização do conhecimento,
tomada em sentido pejorativo, na qual programas, departamentos e instituições
de ensino se fecham como em guetos ou feudos, o que posteriormente trará
barreiras e outras consequências negativas na própria especialização. Tal
problema ocorre em diversas áreas do conhecimento, com diferentes níveis de
gravidade. Este problema se verifica até mesmo dentro de estudiosos das línguas
clássicas, por exemplo, os quais às vezes sabem muito de uma língua, como o
latim, e não sabem praticamente nada de grego, ou o contrário. Infelizmente é
um fenômeno que parece ocorrer com certa frequência em nossas instituições.
Esteves
[2015, p. 202] afirma, de fato, que as várias disciplinas dos Estudos Clássicos
se encontram separadas dentro da estrutura universitária brasileira e coloca
como exemplo os países anglo-saxões, em que “existem faculdades de Classics,
que congregam História, Filosofia e Letras e Literatura antigas, o que facilita
enormemente a integração entre os saberes.” Não se trata de ser especialista em
tudo, mas de pelo menos ter noções gerais, as quais nos ajudarão a
especializar-nos ainda mais em nossa área. É com essa atitude que devemos
enxergar o mundo greco-romano. Estudar, ler e saber um pouco de cada coisa:
língua, literatura, arqueologia, história, epigrafia, religião, filosofia. De
fato, um bom historiador é também um bom latinista ou helenista, assim como um
bom latinista possui noções acuradas da História Antiga.
Referências
Me.
Carlos Eduardo Schmitt é doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras
Clássicas da Universidade de São Paulo e membro do grupo de pesquisa
ATRIVM-UFRJ
AMARANTE,
JOSÉ. Latinitas: leitura de textos em língua latina. Fábulas mitológicas e
esópicas, epigramas, epístolas. Salvador: EDUFBA, 2015.
_________________.
Latinitas: leitura de textos em língua latina. Elegias, poesia épica, odes.
Salvador: EDUFBA, 2015.
BENJAMIN, Walter. La tâche du traducteur. In:
Mythe et violence. Trad. Maurice
de Gandillac. Paris: Denöel, 1971.
BERMAN,
Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Florianópolis:
PGET/UFSC, 2013.
CAMPOS, Carlos Eduardo
da Costa. Historiografia Romana: considerações para o ensino e pesquisa sobre
sobre o Principado de Otávio Augusto. In: Antiguidades e usos do passado –
temas e abordagens. São João de Meriti: Desalinho, 2019, pp. 51-83.
ESTEVES,
Anderson Martins. Os textos literários antigos e o historiador: desafios e abordagens.
In: Cadernos do LEPAARQ Vol. XII, n°24, 2015, pp. 199-210.
Ørberg
Hans H. Lingua Latina per se illustrata, Pars I: Familia Romana. Grenaa: Domus
Latina, 2003.
Ørberg
Hans H. Lingua Latina per se illustrata, Pars II: Roma Aeterna. Grenaa: Domus Latina,
2003.
STÖRIG,
Hans Joachim Das Problem des Übersetzens. Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, 1963.
VASCONCELLOS,
Paulo Sérgio de. Sintaxe do Período Subordinado Latino. São Paulo: Editora
Fap-Unifesp, 2013.
Estimado Carlos,
ResponderExcluirqual o maior desafio que você encontrou no processo de ensino-aprendizagem para os historiadores?
Estimado prof. Carlos. Acredito que o maior desafio reside na escolha de materiais adequados. Não se trata tanto de encontrar material de boa qualidade, mas que se adeque às necessidades e, não menos importante, ao tempo de estudo que os historiadores podem dedicar a isso. O desafio consiste em encontrar um meio termo, com o intuito de ensinar de forma eficaz, mas sem deixar lacunas que posteriormente poderão dificultar a aprendizagem do aluno. Acredito ter sido este o maior desafio encontrado. Obrigado.
ExcluirExcelente texto.
ResponderExcluirNa verdade partilho de sua preocupação. A necessidade de incorporar mais conhecimentos específicos de História no currículo acadêmico só ajudaria o futuro professor de história. Pergunto pois, como conciliar didáticame este conhecimento mais específico de dentro da academia para um aluno secundarista?
ALLEF GUSTAVO SILVA DOS SANTOS
Estimado prof. Allef. Penso que no momento a melhor forma de um professor de história passar esses conhecimentos de latim adquiridos em suas aulas no Ensino Médio seria através da explicação de terminologias. Acredito que não seria viável, tendo em vista o currículo atual dos colégios públicos, dedicar tempo para ensinar conjugações e declinações, por exemplo. Por exemplo, em alguma aula em que tivesse que falar sobre qualquer expressão latina, poderia aproveitar para falar um pouco sobre o seu significado, ou eventos históricos que possam estar ocorrendo. Ex.: volta e meia aparece nas notícias o termo habeas corpus; ou quando um papa é eleito (habemus papam) ou alguma bênção (urbi et orbi); ou até mesmo frases clássicas, como ueni, uidi, uici, ou buscar a tradução de vários monumentos no Brasil que possuem frases em latim, etc.
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