Carlos Eduardo Schmitt


O ENSINO DAS LETRAS CLÁSSICAS PARA O ESTUDO DA ANTIGUIDADE – UMA PROPOSTA METODOLÓGICA



O estudo das letras clássicas, apesar de todo o desprezo que vem recebendo por parte de governos e até mesmo por instituições de ensino, é ainda um diferencial para aqueles que se debruçam sobre os estudos das humanidades, bem como um enriquecimento em outras áreas do saber. Para a História, e especificamente para aqueles que se dedicam ao estudo da História Antiga, em concreto a greco-latina, é imprescindível o conhecimento das línguas clássicas, veículo de toda a produção da época. Ao referirmo-nos ao termo “Letras Clássicas”, entendemos o estudo do latim clássico e do grego antigo.

Assim como seria estranho pensar em um especialista sobre a Guerra de Secessão que não soubesse inglês ou um pesquisador da Revolução Francesa que não tivesse boas noções de francês, do mesmo modo deveria espantar-nos conceber historiadores focados no Império Romano ou em Esparta ou Atenas e que não tenham noções mínimas das línguas desses povos e civilizações. Um verdadeiro pesquisador no campo da História não é quem apenas contrapõe fontes secundárias, mas aquele que também se debruça sobre fontes primárias, compara-as, estuda-as criticamente para confirmar ou reformular o que já foi dito e escrito sobre certos temas, atuando como autoridade na área.

Este trabalho está pensado para estudantes e pesquisadores de História, mas poderia ser direcionado a outras áreas também, indo da filosofia, passando pelo direito e chegando até mesmo à botânica, à medicina e à área da saúde como um todo. Além do público ao qual nos direcionamos, faremos um recorte na área de pesquisa, ao focar apenas no mundo romano. Sendo assim, a língua ao qual nos debruçaremos nas próximas linhas será o latim, concretamente, a experiência de ensiná-lo como uma disciplina optativa para alunos da graduação de História. Temos em vista, conforme afirma Campos [2019, p. 54], que “no campo dos Estudos da Antiguidade, é possível frisar que os textos literários são, certamente, as mais extensas e acessíveis fontes disponíveis aos discentes”. Portanto, torna-se não apenas plausível, mas também necessário, que o historiador tenha um conhecimento amplo da língua original dos textos com que trabalha.

O latim como disciplina para graduandos de História
A ideia de oferecer uma disciplina optativa de latim para alunos da graduação de História da UFRJ surgiu por meio do grupo de pesquisa ATRIVM-UFRJ, o qual promove a interdisciplinaridade na pesquisa e ensino da Antiguidade e tem professores de ambas faculdades como membros. O projeto teve uma duração de dois anos, iniciando no primeiro semestre de 2016 e com término ao final de 2017. Os professores eram alunos do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da UFRJ, os quais eram coordenados por professores efetivos da universidade. Durante o primeiro ano, os participantes do curso receberam noções básicas de latim, com enfoque em vocabulário e estruturas latinas, sem seguir exclusivamente alguma gramática ou material didático em específico. Os graduandos tiveram uma noção geral dos diferentes tipos de pronúncia latina, a saber, a eclesiástica, a reconstituída e a vernácula. Após uma breve explanação sobre cada uma delas, foi-lhes recomendada a reconstituída, utilizada em praticamente todas as instituições de ensino superior do país que ensinam latim. Após a pronúncia e o alfabeto, bem como outros aspectos, como a origem da língua, por exemplo, as aulas se centraram em estruturar o idioma, com suas cinco declinações e quatro conjugações.

Em 2017 tivemos a oportunidade de fazer parte deste projeto e colaborar como professor desses alunos, que já haviam recebido um ano inteiro de formação na língua latina. Havia também alguns alunos mais novos, que estavam apenas começando ou que haviam iniciado o curso há apenas seis meses. Na impossibilidade da criação de duas turmas, fez-se necessário aumentar o tempo de aula, que, apesar de contar com apenas um encontro semanal, passou a ter a duração de três horas, algumas vezes três horas e meia. Os alunos iniciantes foram instados a estudarem por conta própria, a fim de alcançarem o nível médio da turma.

A escolha da metodologia e seu emprego
Há, em geral, duas formas para se estudar o latim. A primeira é a indutiva, também chamada de natural, no qual toda a aula e textos estão escritos apenas em latim, sem qualquer alusão a outro idioma. Um exemplo de tal método é o Lingua Latina per se illustrata, de Hans Ørberg, uma coleção com dois volumes e outros livros de apoio, escrita completamente em latim e que, de forma intuitiva, ensina, com um nível de dificuldade gradual, vocabulário e estruturas latinas, através de histórias, na maioria das vezes. A segunda forma é a dedutiva, que foi basicamente a utilizada em 2016, na qual eram apresentadas estruturas gramaticais aos alunos, e logo depois eram realizados exercícios baseados nessas estruturas recém-apresentadas.

Nosso intuito sempre foi o de fornecer aos alunos as ferramentas necessárias para que eles pudessem aprender o idioma da forma mais ágil e eficaz possível. Contudo, sabíamos das dificuldades por parte deles, seja pela pouca disponibilidade de tempo, seja pela dificuldade que é dedicar-se ao estudo das línguas clássicas, a qual é conhecida apenas por aqueles que já se aventuraram nessa empreitada. Por ser apenas uma disciplina optativa, não poderíamos exigir grandes sacrifícios dos alunos, tampouco seria conveniente deixar-lhes muitas tarefas para serem feitas ao longo da semana, tendo em vista a quantidade de trabalho que tinham, seja pelas disciplinas obrigatórias da graduação, seja por outros afazeres próprios. Apesar da motivação por parte deles, muitos dos quais eram alunos de iniciação científica ou estavam já se preparando para o mestrado e gostariam de se aprofundar em suas pesquisas e textos trabalhados, tendo conhecimento deles no original, estávamos conscientes de que haviam muitos obstáculos a serem superados.

Na inviabilidade de oferecer um método totalmente indutivo, como o supracitado, e tendo em vista os dois semestres de estudo que os alunos já haviam tido com métodos exclusivamente dedutivos, dedicamo-nos a buscar, com sucesso a nosso ver, tendo em vista os resultados obtidos, um meio termo. Tratava-se de uma tese de doutorado, premiada pela CAPES, de José Amarante, professor da Universidade Federal da Bahia. Transformada em livro didático, com dois volumes, a coleção Latinitasleitura de textos em língua latina, caiu como uma luva para a necessidade da turma. Ao explorar textos originais da literatura latina, adaptados apenas nas primeiras unidades, o material não desprezava o ensino das estruturas da língua, funcionando como uma espécie de meio termo entre os dois métodos, tendendo às vezes ao método indutivo e, às vezes, ao dedutivo. O material utilizado foi o primeiro volume, cujo subtítulo é: Fábulas mitológicas e esópicas, epigramas, epístolas. Além disso, há um site do material, latinitasbrasil.org, em que se pode não apenas realizar o download gratuito dos livros, mas também é disponibilizada a correção dos exercícios.

O método foi utilizado com sucesso ao longo de 2017, permitindo aos alunos não apenas repassarem as estruturas aprendidas em 2016, mas também utilizá-las ativamente na leitura e tradução dos textos apresentados no livro. Os resultados foram tais que já ao final do ano os alunos foram desafiados, como substituição à avaliação tradicional, a traduzirem e analisarem textos de suas pesquisas, os quais nos pareceram bastante satisfatórios e, em alguns casos, superaram em muitas nossas expectativas. Se o principal objetivo para o estudo do latim era o conhecimento da língua para entender textos originais sem nenhuma intermediação, a avaliação deveria, de alguma forma, mensurar essa capacidade nos alunos.

Obviamente, estamos falando de uma disciplina optativa que ocorria apenas uma vez por semana ao longo do semestre, ou seja, uma média que, na prática, girava entre vinte e trinta encontros anuais. É praticamente impossível dominar qualquer idioma em tão pouco tempo, e mais uma língua como o latim. Os alunos, ao final desses dois anos, muito provavelmente não dominavam, por exemplo, A sintaxe do período subordinado latino, de Paulo Sérgio de Vasconcellos, mas com certeza receberam as ferramentas necessárias para sua pesquisa e, o mais importante, autonomia para avançar no estudo da língua.

A leitura e tradução de textos latinos
O curso não tinha como finalidade que os alunos fossem capazes de ler qualquer texto escrito em latim como se pode ler algo em inglês, italiano ou qualquer outro idioma moderno. Pensar assim, já de início demonstra uma falta de conhecimento do estilo latino, que em geral se diferencia bastante dos estilos de escrita moderna. Por outro lado, o aluno, tendo certo conhecimento da morfossintaxe latina e com o auxílio de um bom dicionário, terá a habilidade de aprofundar-se em textos e passagens que considerar mais produtivos para a sua pesquisa. Não se trata de deixar de lado boas traduções e comentários de especialistas, mas de tê-los apenas como um apoio e uma proposta, e não como um dogma irrevogável.

Sobre a tradução de textos, sobretudo antigos, concordamos com Antoine Berman [2013, p. 25], quando afirma que é possível a elaboração de uma tradução sem teoria, mas não sem pensamento. De fato, este “pensamento” provavelmente seja a causa do nascimento do jogo de palavras italianas traduttore, traditore [tradutor, traidor]. Não é o mesmo, portanto, ler um original e sua tradução. Se tal premissa é verdadeira para línguas modernas, muito mais o será para as clássicas. Nesse sentido, é ilustrativa a imagem utilizada por Cervantes e citada por Störig [1963, pp. 6-7]: “Parece-me que traduzindo de uma língua a outra [...] se faz justamente como aquele que olha uma tapeçaria flamenga ao avesso: mesmo vendo as figuras, elas estão repletas de fios que as obscurecem, de maneira que não podem ser vistas com o brilho do lado direito.”

Se uma tradução carrega consigo traços tão deformantes e se, por mais esmerada que seja, jamais se igualará ao texto original, por que, então, traduzir ou ler livros traduzidos? Pode parecer simplista a resposta de Walter Benjamin, no entanto carrega consigo uma realidade sem a qual a tradução não teria em sua essência uma razão de ser: “Uma tradução é feita para os leitores que não entendem o original.” [1971, pp. 261-262]. E, no caso das línguas clássicas, acreditamos que não se trate apenas de não entender o original, mas também de estarmos abertos a outras propostas de tradução que podem até mesmo enriquecer nosso conhecimento da língua. De fato, uma tradução deve estar “animada pelo desejo de abrir o Estrangeiro enquanto Estrangeiro ao seu próprio espaço de língua.” [Berman, 2013, p. 97].

Considerações parciais
A modo de conclusão pelo que foi exposto e discutido acima, é digna uma menção à interdisciplinaridade. Todo o projeto não teria sido levado a cabo se não houvesse uma iniciativa por parte de um grupo de pesquisa interdisciplinar. A especialização é necessária para colher frutos fecundos na pesquisa, mas também pode ser uma das grandes responsáveis pela departamentalização do conhecimento, tomada em sentido pejorativo, na qual programas, departamentos e instituições de ensino se fecham como em guetos ou feudos, o que posteriormente trará barreiras e outras consequências negativas na própria especialização. Tal problema ocorre em diversas áreas do conhecimento, com diferentes níveis de gravidade. Este problema se verifica até mesmo dentro de estudiosos das línguas clássicas, por exemplo, os quais às vezes sabem muito de uma língua, como o latim, e não sabem praticamente nada de grego, ou o contrário. Infelizmente é um fenômeno que parece ocorrer com certa frequência em nossas instituições.

Esteves [2015, p. 202] afirma, de fato, que as várias disciplinas dos Estudos Clássicos se encontram separadas dentro da estrutura universitária brasileira e coloca como exemplo os países anglo-saxões, em que “existem faculdades de Classics, que congregam História, Filosofia e Letras e Literatura antigas, o que facilita enormemente a integração entre os saberes.” Não se trata de ser especialista em tudo, mas de pelo menos ter noções gerais, as quais nos ajudarão a especializar-nos ainda mais em nossa área. É com essa atitude que devemos enxergar o mundo greco-romano. Estudar, ler e saber um pouco de cada coisa: língua, literatura, arqueologia, história, epigrafia, religião, filosofia. De fato, um bom historiador é também um bom latinista ou helenista, assim como um bom latinista possui noções acuradas da História Antiga.

Referências
Me. Carlos Eduardo Schmitt é doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo e membro do grupo de pesquisa ATRIVM-UFRJ

AMARANTE, JOSÉ. Latinitas: leitura de textos em língua latina. Fábulas mitológicas e esópicas, epigramas, epístolas. Salvador: EDUFBA, 2015.
_________________. Latinitas: leitura de textos em língua latina. Elegias, poesia épica, odes. Salvador: EDUFBA, 2015.
BENJAMIN, Walter. La tâche du traducteur. In: Mythe et violence. Trad. Maurice de Gandillac. Paris: Denöel, 1971.
BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.
CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Historiografia Romana: considerações para o ensino e pesquisa sobre sobre o Principado de Otávio Augusto. In: Antiguidades e usos do passado – temas e abordagens. São João de Meriti: Desalinho, 2019, pp. 51-83.
ESTEVES, Anderson Martins. Os textos literários antigos e o historiador: desafios e abordagens. In: Cadernos do LEPAARQ Vol. XII, n°24, 2015, pp. 199-210.
Ørberg Hans H. Lingua Latina per se illustrata, Pars I: Familia Romana. Grenaa: Domus Latina, 2003.
Ørberg Hans H. Lingua Latina per se illustrata, Pars II: Roma Aeterna. Grenaa: Domus Latina, 2003.
STÖRIG, Hans Joachim Das Problem des Übersetzens. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Sintaxe do Período Subordinado Latino. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2013.

4 comentários:

  1. Estimado Carlos,

    qual o maior desafio que você encontrou no processo de ensino-aprendizagem para os historiadores?

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    1. Estimado prof. Carlos. Acredito que o maior desafio reside na escolha de materiais adequados. Não se trata tanto de encontrar material de boa qualidade, mas que se adeque às necessidades e, não menos importante, ao tempo de estudo que os historiadores podem dedicar a isso. O desafio consiste em encontrar um meio termo, com o intuito de ensinar de forma eficaz, mas sem deixar lacunas que posteriormente poderão dificultar a aprendizagem do aluno. Acredito ter sido este o maior desafio encontrado. Obrigado.

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  2. Excelente texto.
    Na verdade partilho de sua preocupação. A necessidade de incorporar mais conhecimentos específicos de História no currículo acadêmico só ajudaria o futuro professor de história. Pergunto pois, como conciliar didáticame este conhecimento mais específico de dentro da academia para um aluno secundarista?

    ALLEF GUSTAVO SILVA DOS SANTOS

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    1. Estimado prof. Allef. Penso que no momento a melhor forma de um professor de história passar esses conhecimentos de latim adquiridos em suas aulas no Ensino Médio seria através da explicação de terminologias. Acredito que não seria viável, tendo em vista o currículo atual dos colégios públicos, dedicar tempo para ensinar conjugações e declinações, por exemplo. Por exemplo, em alguma aula em que tivesse que falar sobre qualquer expressão latina, poderia aproveitar para falar um pouco sobre o seu significado, ou eventos históricos que possam estar ocorrendo. Ex.: volta e meia aparece nas notícias o termo habeas corpus; ou quando um papa é eleito (habemus papam) ou alguma bênção (urbi et orbi); ou até mesmo frases clássicas, como ueni, uidi, uici, ou buscar a tradução de vários monumentos no Brasil que possuem frases em latim, etc.

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